BERGSON E O ESPIRITISMO: A Evolução do Princípio Espiritual

A originalidade do Espiritualismo de Bérgson

A filosofia de Henri Bergson (Paris, 1859-1941) pode ser definida com o nome de evolucionismo espiritualista. Ela constitui o ponto de referência do pensamento francês entre o fim do séc. XIX e as primeiras décadas do séc. XX. Nessa filosofia fundem-se os temas do espiritualismo antigo, como o de Agostinho, e os da tradição espiritualista francesa, que encontra suas maiores expressões em Descartes e Pascal.

A temática bergsoniana aproxima-se da temática espírita, talvez pelo fato de serem contemporâneas, mas isso não significa definitivamente que Bergson possa ser considerado espírita. O bergsonismo se aproxima da Filosofia Espírita pela sua temática sim, pelos seus fundamentos, mas resguardada a conceituação específica de cada um. Dado o fato de Bergson viver em Paris e à mesma época de Kardec, talvez se explique a identificação da temática, peculiar ao período que sucedeu ao Iluminismo. Em meio a essa temática podemos destacar: a teoria do princípio espiritual, o conceito de espírito e memória, a relação corpo-espírito, provas positivas da existência do espírito independentemente do corpo físico, a imortalidade da alma e, sobretudo o papel da intuição, como o modo de conhecimento espiritual por excelência. Bergson conclui seu pensamento ainda exaltando a vida social como o fim último da existência, a qual se realiza, autenticamente, através de uma moral aberta e de uma religião dinâmica.

Em sua obra, As duas Fontes da Moral e da Religião, o referido filósofo exalta a necessidade do desenvolvimento de uma “ciência psíquica”, pois somente através dela é que se poderá alcançar a certeza científica da imortalidade da alma e com isso se obter uma metafísica, não abstrata, mas fundada em um empirismo superior. Conta-se que ele mesmo se dedicou a pesquisas sobre a comunicação com desencarnados, mas que, no entanto, foram desprezadas a sua época. Participou do Grupo de Estudos de Fenômenos Psíquicos1 em Paris e foi presidente da Society for Psychical Research de Londres, quando pronunciou a notável conferência “Fantasmas dos vivos”, e que consta em sua obra A Energia Espiritual.2

Em Matéria e Memória Bergson realiza um trabalho descritivo sobre a relação corpo e espírito, e discute a localização das lembranças, provando através de estudos de caso de afasia, que essas lembranças não se encontram localizadas no cérebro, mas no espírito. Realizou inúmeros experimentos, nos quais verificou que as vítimas de lesão cerebral logravam, amiúde, conservar intacta a memória. Por outro lado verificou que alguns pacientes sem, contudo apresentar lesão no cérebro, haviam perdido a memória. Efetivamente, ambos os casos comprovam que a memória, o espírito, é independente do corpo físico.

Se o trabalho do cérebro correspondesse à totalidade da consciência, se houvesse equivalência entre o cerebral e o mental, a consciência poderia seguir o destino do cérebro e a morte seria o fim de tudo […]. Mas se conforme tentamos demonstrar, a vida mental ultrapassa a vida cerebral, se o cérebro se limita a traduzir em movimento uma pequena parte do que se passa na consciência, então a sobrevivência se torna tão verossímil que a obrigação da prova incumbirá àquele que nega, mais do que àquele que afirma […].3

Ora, a única razão para se crer na extinção da consciência é a desorganização do corpo após a morte, e esta razão não tem mais valor se a independência da consciência em relação ao corpo é um fato que se constata. Tais considerações aproximam-se da descrição de casos e fundamentos em A Loucura sob um Novo Prisma, de Dr. Bezerra de Menezes.

Embora Bergson admita a importância de se partir dos fatos e da fenomenologia para provar a realidade do espírito, a ciência possui uma visão parcial do espírito, cabendo à metafísica, por meios adequados, o conhecimento da natureza do real espiritual. Dessa forma Bergson estabelece uma crítica do conhecimento, particularmente ao cientificismo e intelectualismo, fundamentando-a através da teoria da evolução do princípio espiritual, a qual culmina no nascimento da consciência cognoscente.

A ciência, em sua abordagem fenomênica, não basta para conhecer o espírito, pois se restringe a experiência observável, e não é de sua alçada a essência metafísica. Se o dogmatismo científico — para o qual se teve que criar o termo “cientismo” 4 — absorve o pensamento inteiro nas coisas, ele acaba por negar a realidade do espírito, que no entanto é o próprio criador da ciência; como se a obra valesse mais que o autor. Desta forma, ao se pretender um conhecimento autêntico, deve-se transcender a visão meramente fenomênica, a qual abarca apenas a parte superficial do real.

Os filósofos, quando não são mais sistemáticos que os próprios homens de laboratório, atêm-se ao relativismo, como é o caso de Immanuel Kant, segundo o qual a metafísica é um empreendimento inatingível e a filosofia passa a ser a ciência dos limites do espírito humano. Bergson, ao contrário, busca provar a possibilidade da experiência metafísica, a infinita capacidade criadora do espírito, demonstrando que o absoluto, a coisa em si, não é impossível e nem um mistério, mas que é possível na experiência interior da intuição.

Algumas filosofias, sem dizer o pensamento cientificista e positivista, são qual o prisioneiro da caverna de Platão, que sem esperança de liberdade, acorrentam o espírito ao fundo da caverna, e tomam apenas as sombras como o mundo real. Este é um quadro triste, onde se encontra uma demissão do espírito, uma negação da verdadeira natureza do ser humano. Contra essa demissão, toda a filosofia de Bergson é um protesto, e toda sua obra uma reabilitação, uma reafirmação da realidade do espírito, e de sua infinita liberdade criadora.

Ciência e Filosofia

Se a prova maior é a experiência, ao lado da experiência sensível que oferece à ciência seu objeto concreto, vivemos uma experiência interior, afirma Bergson, tão concreta e irrecusável quanto a primeira. Não bastam raciocínios puros, sem base na experiência espiritual da intuição. Se à ciência cumpre conhecer o mundo fenomênico e material, já à filosofia cabe atingir a realidade do espírito. Se compete à ciência, desta forma, o bem estar da humanidade, somente a filosofia permitirá ao homem a alegria interior. Se à ciência, em sua função analítica abarca o real em sua face aparente, deve a outra parte, a face invisível, pertencer a uma metafísica que, partindo igualmente da experiência, possa penetrar o real em-si, e não apenas raciociná-lo. Cumprindo com essa exigência de uma visão mais compreensiva do real, a Ciência Espírita contém duas partes: uma experimental, sobre as manifestações em geral; outra filosófica, sobre as manifestações inteligentes.5 Importa não confundir os objetos de conhecimento, pois o emprego de métodos científicos para questões metafísicas pode favorecer as teorias materialistas.

Embora pertencentes a âmbitos diferentes, e que devem ser respeitados em suas peculiaridades, sem dúvida, ciência e filosofia devem complementar-se com vistas a um conhecimento mais compreensivo. Assim como espírito e matéria desenvolve-se em uma experiência comum, afirma Bergson, metafísica e ciência devem igualmente complementar-se para a apreensão do real. Desta forma, o método experimental, analítico, não pode prescindir do método intuitivo, caso contrário a ciência permanecerá sempre na superfície da realidade e, a filosofia por sua vez restringir-se-á abstrações mentais. É assim
que afirma ainda Léon Denis que […] a ciência experimental será sempre insuficiente se não for completada pela intuição, por esta espécie de adivinhação interior que nos faz descobrir as verdades essenciais.6 No entanto, importa antes estabelecer essas diferenças de natureza, entre essência e aparência, entre espírito e fenômeno e efetivamente distinguir as duas faces do real:

O Espiritismo filosófico é uma ontologia fenomenológica com duas faces: material e visível uma e invisível a outra. Há uma imagem que nos permite compreender melhor esse todo ontológico: semelhante a uma esfera sem nenhum recorte, ele apresenta uma parte iluminada e outra escondida. Alguém que olhe do exterior julga que somente a parte ensolarada é habitada.7

A face iluminada seria o fenômeno, o real qual se apresenta aos sentidos, e que é do domínio da ciência; a face oculta seria a essência, o princípio espiritual, o que não se vê, mas que se concebe pela razão e pela intuição — e que, portanto é da alçada da filosofia. Embora ciência e filosofia se complementem, Bergson, em sua exigência de precisão e de rigor metódico, afirma a importância de não se confundir a parte iluminada da esfera com a parte oculta, a parte essencial com a fenomênica, não misturar as duas ciências na concepção do real; uma coisa é a ordem do espírito, a ordem do vital, outra coisa é a ordem do físico. Efetivamente inserir as questões metafísicas nos procedimentos racionais da ciência experimental implica em imprecisão, o que pode gerar falsos problemas, idéias mal colocadas, que acabam por minar o projeto metafísico. Pensar o espírito pela visão da matéria é um falso raciocínio, que favorece as explicações materialistas. È assim que afirma Allan Kardec, em Introdução a O Livro dos Espíritos:

O anatomista, dissecando o corpo humano, procura a alma e porque não a encontra com o seu bisturi, como se encontrasse um nervo, conclui que ela não existe. Isto em razão de colocar-se num ponto de vista exclusivamente material.

Efetivamente, uma das causas do materialismo exacerbado que caracteriza nossos tempos é a falta de procedimentos racionais precisos, de método rigoroso. O método da ciência não se presta a pensar a metafísica e vice-versa; a razão empregada de forma errada é o maior perigo para aqueles que pretendem defender concepções espiritualistas, pois pode materializar, coisificar, o que é pura essência.8 Não se trata de negar a ciência, mas antes aprofundá-la no domínio que lhe é próprio, assim como buscar a parte essencial com uma metodologia adequada. Ao se pretender pensar a metafísica apenas com o olhar da ciência analítica, pode-se denegar a realidade do espírito, a qual só pode ser conhecida por uma visão intelectiva ou intuitiva.

Sem dúvida, através da fenomenologia pode-se concluir por uma causa espiritual, porém a natureza dessa causa compete à metafísica e à ontologia. Disso decorre a importância de se exaltar e aprofundar as concepções metafísicas do Espiritismo, pois nas leis da criação repousam toda a ética espírita. Espírito não é fenômeno, mas nômeno, ou seja, a essência, a substância determinante; fenômeno é efeito, mas a causa do fenômeno é espiritual. Conhecer as causas é conhecer a natureza, o modo de ser das criaturas, e sua destinação — e a ciência das causas primeiras denomina-se metafísica.

Bergson elucida, pois que, se mesmo as teorias metafísicas não conseguiram ainda abarcar a natureza da realidade espiritual, isto se deve a confusões que nosso raciocínio mal formulado criou, dado o fato de o intelecto, por ter se desenvolvido a partir da experiência sensível, estar voltado para realidade pragmática, para as coisas da matéria sensíveis e portanto não se presta para abarcar a natureza da realidade espiritual. Desse modo, o primeiro erro de nosso raciocínio é empregar para as coisas do espírito a noção de espaço. Ora, o espaço é o reino da divisão, da uniformidade, objeto de representação, porém a realidade do espírito é indivisível, altera infinitamente a sua qualidade, e não é objeto de representação, pois consiste em substância e não possui forma. No entanto, se Bergson afirma a necessidade de deixar de lado as concepções de espaço para entender o espírito, ele toma como fundamento a noção do tempo:

Tempo científico e tempo do espírito

Importa aqui uma segunda distinção: o tempo da ciência fenomênica distingue-se da temporalidade da consciência. O primeiro é um tempo espacializado, medido pelo relógio, divisível em intervalos no espaço; este se desenvolve em uma sucessão de segundos, minutos e horas que são sempre idênticos quanto à natureza. Já o tempo metafísico, do espírito, da substância, não é divisível porque não é mensurável, mas sim um fluir contínuo; por outro lado, cada instante é diferente do anterior, constituindo-se, portanto de momentos heterogêneos, posto que o espiritual evolua infinitamente. Uma vez que não se divide, que não se da no espaço e não se mede, Bergson denomina esse tempo real de duração, a qual não pode ser representada por símbolos nem por números, mas que consiste em um fluir contínuo, onde todos os momentos se interligam uns aos outros e tudo permanece, pois tudo que é espiritual possui o atributo da imanência.

Poderíamos aproximar a concepção bergsoniana de duração com a concepção de
eternidade de Galileu Galilei, segundo consta em A Gênese:

O tempo não é mais que uma medida relativa da sucessão das coisas transitórias, ao passo que a eternidade é essencialmente una, imóvel e permanente, insuscetível de qualquer medida do ponto de vista de duração, compreenderemos que para ela não há começo nem fim.9

É importante considerar assim que a noção de duração — como contrária a mensurabilidade da ordem do transitório — ao apreender a unidade do tempo real ou metafísico, torna-se condição para se fundamentar a teoria do princípio espiritual, de sua imanência na criação, assim como a natureza de tudo que é da ordem do espírito.

* os trabalhos completos estarão disponíveis em forma de livro *

Referências

1.  BERGSON, Henri. Mélanges. Paris: Presses Universitaires de France, 1972.
2. BERGSON, Henri. L’énergie spirituelle. Paris: Presses Universitaires de France, 1985.
3. BERGSON, Henri, LӃnergie Spirituelle. Essais et Conferences. Alcan, 1919. p. 47, 57-58.
4. Atitude segundo a qual a ciência dá a conhecer as coisas como são, e resolve todos os problemas da condição humana e é suficiente para satisfazer todas as necessidades legítimas da inteligência humana. Segundo o cientismo o método científico deve estender-se sem exceção a todos os domínios da vida humana.
5. KARDEC, A. O Livro dos Espíritos, Introdução, XVII.
6. DENIS, Leon. O Problema do Ser do Destino e da Dor, p. 325.
7. MOREIL, Andre. Vida e Obra de Allan Kardec, p. 131.
8. Recomendamos a respeito a leitura da obra de Herculano Pires, A Pedra e o Joio, Ed. Paidéia.
9. KARDEC, Allan, A Gênese. cit., cap. VI, 13.

Bibliografia

BILAC, Olavo. (1919) Tarde. Rio de Janeiro: Francisco Alves.
CAMPOS, Humberto de. (1954a) Diário secreto, volume I. Rio de Janeiro: Edições O
Cruzeiro.
—. (1954b) Diário secreto, volume II. Rio de Janeiro: Edições O Cruzeiro.
—. (org.) (1960a) Antologia da Academia Brasileira de Letras. Rio de Janeiro, São Paulo,
Porto Alegre, Recife: Editora Mérito.
—. (1960b) Crítica, I série. Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre, Recife: Editora
Mérito.
—. (1960c) Memórias. Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre, Recife: Editora Mérito.
—. (1960d) Sepultando os meus mortos. Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre, Recife:
Editora Mérito.
—. (1960e) Sombras que sofrem. Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre, Recife: Editora
Mérito.
HOMERO. (2000) Odisséia, 3. ed. Tradução Odorico Mendes. Edição de Antônio Medina
Rodrigues. São Paulo: Ars Poetica: Edusp.
HORÁCIO. “Ars Poetica”. Disponível em:
http://www.thelatinlibrary.com/horace/arspoet.shtml. Acesso: 17 de setembro de 2007.
—. “Carmen Saeculare”. Disponível em:
http://www.thelatinlibrary.com/horace/carmsaec.shtml. Acesso: 17 de setembro de 2007.
—. Odes and Epodes. Disponível em: http://www.gutenberg.org/etext/9646. Acesso: 17 de
setembro de 2007.
PENALVA, Gastão. (1939) “A Humberto de Campos – (onde estiver)”. Jornal do Brasil, 4
de outubro de 1939.
RENAN, Ernest. (1894) Les Apôtres, 13. ed. Paris: Calmann Lévy.
RENAN, Ernest. Souvenirs d’enfance et de jeunesse. Disponível em: http://gallica.bnf.fr/.
Acesso: 19 de novembro de 2007.
VIEIRA, Padre Antônio. (2001) “Sermão da Primeira Dominga da Quaresma”. In: —.
Sermões. Tomo 2. (Org. Alcir Pécora). São Paulo: Hedra, p. 453-466.
XAVIER, Francisco Cândido. (1993) Luz acima [Irmão X], 8. ed. Rio de Janeiro: FEB.
—. (1995a) Lázaro redivivo [Irmão X], 10. ed. Rio de Janeiro: FEB.
—. (1995b) Novas mensagens [Humberto de Campos], 10. ed. Rio de Janeiro: FEB.
—. (1996) Brasil, coração do mundo, pátria do evangelho [Humberto de Campos], 22. ed.
Rio de Janeiro: FEB.
—. (1998a) Crônicas de além-túmulo [Humberto de Campos], 13. ed. Rio de Janeiro: FEB.
—. (1998b) Boa nova [Humberto de Campos], 23. ed. Rio de Janeiro: FEB.
—. (2002) Cartas e crônicas [Irmão X], 10. ed. Rio de Janeiro: FEB.